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História de uma carta - A carta do Lazareto da Ilha Grande | Klerman Lopes

Atualizado: 4 de abr. de 2020

Klerman Wanderley Lopes - Novembro de 2012

Inicialmente publicada na Revista FEFIBRA - nº 20 - Dez/2013


Introdução


A propagação de epidemias entre diversos lugares, principalmente na Europa, sempre foi motivo de preocupação das autoridades sanitárias e postais. Diversas instalações de saúde, especialmente em portos e fronteiras, foram instaladas em todo o velho Continente, visando à quarentena e desinfecção das correspondências transportadas. Esse aspecto particular da Filatelia desperta grande interesse nos colecionadores de História Postal. Grande número de correspondências do Brasil para o exterior no século XIX foi submetida a processos sanitários nos portos de entrada, sendo frequentemente observados os cortes de desinfecção e as manchas de aspersão nos envelopes ou sobrecartas.


Não conheço, na Literatura Filatélica, pesquisa sobre peças desinfetadas em instalações brasileiras. O recebimento de uma carta que por aqui passou por esse processo e que imagino importante item da Filatelia brasileira, motivou-me a compartilhar o seu estudo com os colegas filatelistas, aos quais peço comentários.


Nota histórica:

Desde o ano de 1400, os Índios Tamoios já haviam constituído aldeamentos na Ilha Grande, denominando o local de “Ipaum Guaçu” (Ilha Grande). Localizada junto à Bahia de Angra dos Reis, litoral sul do Rio de Janeiro, em 6 de janeiro de 1502 o navegador Gonçalo Coelho a descobriu para a Coroa Portuguesa. Por sua localização privilegiada, passou a ser visitada constantemente por navegantes portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e holandeses. Aliados aos franceses, os Tamoios insurgiram-se contra a dominação portuguesa em todo o litoral brasileiro, do Espírito Santo a São Paulo, sendo a Ilha Grande um dos principais palcos da resistência Indígena. O conflito, que durou de 1554 a 1567, ficou conhecido como a “Guerra da Confederação dos Tamoios” e causou grande atraso na colonização da Ilha Grande.


No ano de 1559 o Reino de Portugal designou Dom Vicente da Fonseca para garantir a sua posse e administrá-la, surgindo assim o primeiro núcleo colonizador português. Ao longo dos anos, a cultura de cana de açúcar e posteriormente a do café, baseadas no trabalho de escravos africanos, atraiu novos habitantes bem como, por sua localização estratégica o afluxo de piratas de todas as nacionalidades. A Ilha Grande também funcionou como importante entreposto do tráfico de escravos até a promulgação da Lei Áurea, em 1888.

Fig 1 - A Ilha Grande
Fig 1 - A Ilha Grande

Em 1863, o Imperador D. Pedro II visitou pela primeira vez a Ilha Grande e em 1884 adquiriu a Fazenda do Holandês, que hoje compreende as localidades de Vila do Abraão, e a de Dois Rios (Figura 1) e ali mandou construir em 1886 o primeiro leprosário do País, denominado Lazareto, para servir como centro de triagem e quarentena. (Figura 2). Tinha como objetivo atender à horda de imigrantes, cargas e bagagens que chegavam ao Brasil, especialmente da Europa, na época assolada pela Cólera-Morbo. Era também parada obrigatória dos Navios Negreiros, que ali deixavam os escravos doentes.


Fig 2 - O Lazareto - pintura a óleo de Nicolau Fachinetti
Fig 2 - O Lazareto - pintura a óleo de Nicolau Fachinetti

Foram edificados pavilhões de primeira, segunda e terceira classes, para acomodar os passageiros das respectivas classes dos navios, atendendo às exigências da sociedade hierarquizada do Império. O Lazareto possuía 16 quartos para três pessoas em suas acomodações de primeira e segunda classe (Figura 3) e um pavilhão murado de terceira classe para 500 pessoas - imigrantes, em sua maioria. (Figuras 4 e 5). De agosto de 1893 a janeiro de 1894, navios procedentes de países com grave surto de cólera, como Itália e Espanha, foram obrigados a retornar aos seus países de origem, com suas cargas e passageiros.

Fig 3 - Pavilhão da 1ª e 2ª classes
Fig 3 - Pavilhão da 1ª e 2ª classes
Fig 4 - Pavilhão da 3ª classe
Fig 4 - Pavilhão da 3ª classe

A água para abastecer o Lazareto foi desviada do Córrego do Abraão, sendo para tanto construída uma barragem e um belo aqueduto (Figura 5), do qual restam apenas ruínas.


Fig 5- O Aqueoduto
Fig 5- O Aqueoduto

Por ali passaram cerca de quatro mil embarcações em seus anos de funcionamento, sendo desinfetadas aproximadamente 3.300 delas.As substâncias utilizadas nos processos de desinfecção eram em geral o enxofre, para os passageiros, e o cloreto de zinco e o ácido fênico, para as bagagens e objetos.


Em 1889, após a proclamação da República do Brasil, o Imperador D Pedro II foi confinado na Vila do Abraão, aguardando o navio “Alagoas”, que o levaria ao exílio na França. Em 1903 o Lazareto foi desativado, passando a funcionar como presídio político.

Discussão da carta


Em seu monumental levantamento das agências e marcas postais do Brasil, Reinhold Koester não encontrou qualquer menção à presença de uma agência de correios instalada na Ilha Grande. Refere, no entanto, possuir um carimbo circular sobre selo da emissão da casa da Moeda, datado de ... Jan 87, do qual mostramos a imagem. (Figura 6 ilustrada ao lado)




Solicitando informações a respeito e sob o título “An unusual disinfected cover”, o estudioso e comerciante britânico Brian Moorhouse fez publicar na página 13 da edição de novembro de 1993 da revista Mainsheet, da qual era o editor, a imagem da frente de curiosa carta para os Estados Unidos com o carimbo circular da Ilha Grande e a marca “L.I.G./DESINFECTADO”.


Guardei essa referência por muitos anos até que há dois meses recebi a peça pelo correio, por gentileza de um querido amigo que sabia do meu grande interesse por ela e concordou em cedê-la.


Descrição:

Trata-se de carta endereçada a John A. Thompson, Monticello em Nova York, apresentando em sua frente selo com a efígie de D. Pedro da emissão “Casa da Moeda” de 1884 (RHM 57) – primeiro porte brasileiro para o exterior da UPU - obliterado com o carimbo comum de duplo círculo ILHA – GRANDE, datado de 15 de abril de 1887 e apresentando florão em sua porção inferior. À esquerda e ao alto observa-se grande marca retangular em violeta, medindo 60 x 15 mm, com os dizeres “L.I.G./DESINFECTADO”.


Embaixo da marca a presença de mancha de desinfecção química. No verso da carta, a presença de dois carimbos circulares do Correio do Rio de Janeiro datados de 15 de abril de 1887, respectivamente da 3ª e 4ª Secção /Noite, além dos carimbos americanos “New York/Paid All e Transit”, esse último de 11 de maio de 1887.


Fig 7 - Frente da carta
Fig 7 - Frente da carta

Fig 8 - Verso da carta (detalhe)
Fig 8 - Verso da carta (detalhe)

Comentários finais:


Segundo o pesquisador Paulo Novaes, autor de importante trabalho sobre as Agências Postais do Rio de Janeiro, a primeira menção ao Lazareto aparece nos roteiros das malas postais em 1866, o que coincide com a data de criação do Leprosário. É textualmente anotado: “Lazareto da Ilha Grande - EFDPII (Estrada de Ferro D. Pedro II) até Sepetiba + Lancha (que até hoje faz o trajeto de Mangaratiba até a Vila do Abraão)”.


O Mapa Postal de 1888 indica apenas “Lazareto, Hospital”, sem menção a Agência de Correio instalada no local.


A informação oficial é de que no século XIX a Agência da Ilha Grande foi criada em 20 de março de 1891 e suprimida em 31 de dezembro de 1896. Portanto, presumo que o carimbo “ILHA-GRANDE” de 1887 tenha sido

aplicado sobre a carta por agentes dos correios de Angra dos Reis ou Mangaratiba.

Dedico este estudo ao amigo James Jefferson


Fontes de consulta:

  • Myrian Sepúlveda dos Santos -Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.14 no.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2007

  • Fernanda Rebelo; Marcos Chor Maio; Gilberto Hochman - Estud. hist. (Rio J.) vol.24 no.47 Rio de Janeiro Jan./Junho 2011

  • Paulo Novaes – Site www.agenciaspostais.com.br

  • Reinhold Koester - Carimbologia do Brasil Clássico, Fascículo XII, in Brasil Filatélico, revista do Clube Filatélico do Brasil


Artigo gentilmente cedido pelo autor.

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